Posted by : Charlie S. Dias
terça-feira, 2 de abril de 2019
Experimento nº 2 – Nhom nhom nhom nhom
Este segundo episódio da rubrica “Trivialidades do quotidiano” irá descrever generalizadamente as minhas vivências semanais numa cantina de faculdade cujo acesso é abrangido a mais que estudantes locais.
A jornada começa na fila para ir almoçar. Urge referir que a
típica fila de almoço se estende até um corredor e perpendicularmente a uma
zona de passagem entre dois acessos, pelo que as pessoas têm de “furá-la” para
atravessar de um lado ao outro. Ora, por incrível que pareça, por mais que estrambolicamente
me cole ao indivíduo de trás ou da frente, abre-se quase sempre um espaço em
meu contorno, o que leva as gentes apressadas do corredor a escolher essa precisa brecha para trespassar aquela
linha de esfomeados. Pela frente ou por trás, mas sempre em minha volta,
independentemente da minha localização na fila. Não poucas vezes, mesmo sem se
abrir qualquer nesga entre mim e os meus vizinhos de espera, decidem passar
pela zona onde estou e então lá pedem licença para passar, ou, os mais educados,
procuram atravessar mudamente e esperar que o seu encontrão crie uma clareira digna à sua passagem. Porque pedir licença a estranhos aleija e requer coragem...
É um duro golpe na minha auto-estima: Estarei possivelmente demasiado magro ou rechonchudo, só ainda não descobri qual, porque parece que claramente tenho corpo de rotunda ou de cone. Ou talvez simplesmente chame muito a atenção, talvez me torne demasiado mirabolante por ser o único ali em pé sem o pescoço vergado e antebraço erguido, já que não tenho net no telemóvel. Admito que se torna um bocado difícil escolher que posição dar aos braços e para onde olhar, e possivelmente um dia comece a fingir que vou à net ou fique somente a entreter-me offline, por exemplo a memorizar a minha lista de parcos contactos ou a reler as antigas mensagens da minha querida Vodafone.
É um duro golpe na minha auto-estima: Estarei possivelmente demasiado magro ou rechonchudo, só ainda não descobri qual, porque parece que claramente tenho corpo de rotunda ou de cone. Ou talvez simplesmente chame muito a atenção, talvez me torne demasiado mirabolante por ser o único ali em pé sem o pescoço vergado e antebraço erguido, já que não tenho net no telemóvel. Admito que se torna um bocado difícil escolher que posição dar aos braços e para onde olhar, e possivelmente um dia comece a fingir que vou à net ou fique somente a entreter-me offline, por exemplo a memorizar a minha lista de parcos contactos ou a reler as antigas mensagens da minha querida Vodafone.
Chegando finalmente ao refeitório, ainda na fila de preparação do
tabuleiro, há quase sempre um denominador comum entre todas as semanas: A falta
de copos à minha chegada. Bebe-se muito aqui. Ou partem-se apenas muitos copos,
ou o tempo para repô-los escasseia, já que imagino que também se coma muito de
talheres aqui, e esses não costumam faltar com tanta regularidade.
Quando o dia é belo e estas relíquias de vidro são repostas
precisamente na minha vez, costumo ter o cuidado de fornecer também os sujeitos
da frente que foram obrigados a seguir sem copo. A estranheza com que
normalmente me agradecem, dá que pensar: Como se de um grande favor se
tratasse, e não apenas de um gesto básico de cidadania e empatia. Mas é muito bom,
não me estou a queixar, atenção! Já que ainda não faço nada de realmente útil e
grandioso pela humanidade, ao menos que fique a sentir que salvei uma vida
cada vez que entrego um copo ao vizinho da frente. Já não morrerá à sede!
Esse é o primeiro de vários momentos em que me questiono se a generalidade das pessoas pensa pouco nas pequenas necessidades do próximo ou se sou eu que penso demasiado nisso.
Esse é o primeiro de vários momentos em que me questiono se a generalidade das pessoas pensa pouco nas pequenas necessidades do próximo ou se sou eu que penso demasiado nisso.
É importante explicar que na fase seguinte
nos confrontamos com duas senhoras com os tabuleiros das diversas opções da
ementa à sua frente, que esperam uma escolha para “encher” (grandes aspas) os
nossos pratos. Ocasionalmente, apanho mesmo à minha frente daqueles... ham...
como hei-de chamá-los...? Ham... picuinhas(!)... que podem ter alguma
dificuldade em distinguir aquela cantina racionada de um restaurante self-service: “Olhe,
escolha-me aí o bifinho mais fininho que tiver, por favor, o mais fininho de
todos... Ah, não pode ser com arroz e batata? Ora bolas... meta-me aí então
muita salada, por favor. Mais... mais... mais um bocadinho...”.
Sim... confesso que o meu cérebro implicativo e pontualmente TALVEZ
também picuinhas e exagerado, capta aquelas palavras de modo um pouco mais refinado: “Olhe, era um Filet Mignon com batata aos triângulos,
por favor... Ah, não têm? Então olhe... está a ver aquele tabuleiro ali cheio
de salada? E agora está a ver ali a fila de desesperadinhos por comer que se
estende até ao corredor...? Então passe-me mas é para cá o tabuleiro, que eu quero
muita salada! SALAAAAAAADAA!!! Ah, e a carne é mastigada, por favor... Estou
com pressa.”.
Depois de servido e já com a refeição paga, eis a próxima etapa: A escolha do local
para me sentar. Nisso tenho tido sorte, há que dizê-lo. Costuma sempre haver um
lugarzinho com o mínimo de uma cadeira de distância de alguém (contando na
horizontal, vertical e também na diagonal). Uma vez, um simpático senhor que
parece desconhecer essa estranha regra - secretamente estabelecida e
impronunciável - de nos sentarmos o mais longe possível de desconhecidos, puxou
a cadeira do lado à minha diagonal. Perguntou-me então se poderia ali sentar-se,
se não haveria problema...
Fiquei admirado com aquele encantador e disparatado pedido de
permissão, e logo me poderiam ter surgido respostas de inocente sátira:
“Olhe que a minha lepra contagia-se também na diagonal, veja
lá...”.
“E depois tapar-me essa maravilhosa vista de
pessoas a comer de costas??? Nem pense!”.
“Desculpe, mas não vê que está a ocupar a minha mesa de 20
lugares? A minha cantina, a minha faculdade, a minha cidade, o meu país, o meu
planeta...? Por favor, com o devido respeito, vá comer e existir para outro
lado onde não me incomode.”.
Mas, no fim de contas, até com medo de ser mal interpretado,
respondi apenas:
- Claro, claro. – Com um sorriso assim-assim.
Almoço sem pressas, mas levanto-me e vou-me embora mal acabe.
Quando a cantina está quase cheia, fascinam-me particularmente os fregueses daquele aparente refeitório/café/bar que ficam a fazer sala e a ocupar
lugares após terminarem.
“Pronto, uma pessoa já nem pode socializar um bocadinho ou esperar
que os amigos acabem a refeição, que chato do catano...” – Poderão pensar.
Mas desenganem-se os retrógrados que pensam que essa é a
justificação mais comum: socializar. Só se for socializar através de
telemóveis. Conversar com os amigos ali cara a cara é tão século passado! Por
favor, estamos no século XXI...
Os meus preferidos são aqueles – normalmente solitários – que,
nessas mesmas situações de enchente, não deixam de aconchegar a sua preciosa
mochila na cadeira do lado. Fazem lembrar os seus parentes dos autocarros, aos
quais eu peço deliberadamente licença para abancar a seu lado quando vejo que o
autocarro está a ficar lotado, só mesmo para chatear...
Essas mochilas, coitadas, que já devem estar fatigadas de
andarem a ser levadas às costas a manhã toda. Julgo que o chão imundo e
lamacento - típico de cantina - não pode servir de desculpa, porque as mochilas
podiam ser apoiadas nas costas da cadeira do seu dono, e assim também ninguém
se cansava. Deduzo, no entanto, que o conforto daqueles assentos deva ser uma
das mais-valias daquele recinto de degustação e convívio, porque nunca em toda a história uma mochila se queixou ali de falta de conforto.
Quando se acaba a refeição, é necessário levar o tabuleiro
para os respetivos carrinhos de loiça suja (caso ainda exista alguém que não saiba como
funciona uma cantina). Aí, tento deixar o meu tabuleiro nas
prateleiras mais altas que consigo alcançar (lá estou eu a pensar nos
baixinhos...), e empurrá-lo o máximo possível, para poupar encargos maiores àqueles últimos desgraçados que já mal encontram sítio para largar o tabuleiro. São
mariquices minhas... Só tenho pena que não apanhe ninguém que partilhe estes meus
tiques de arrumação de tabuleiros antes de mim.
Finalmente, saio de estômago cheio (de ar ou de comida,
eis a questão). Mais um belo almoço.
Charlie S. Dias
