Posted by : Charlie S. Dias segunda-feira, 11 de março de 2019



Garry Kasparov, Bobby Fischer, Anatoly Karpov, Magnus Carlsen, Viswanathan Anand, Vladimir Kramnik...

Estes nomes dizem-lhe alguma coisa? É possível que não. Talvez o primeiro... Pelo menos a mim, só o primeiro nome me tinha passado pela cabeça até há pouco tempo. São nomes de alguns dos maiores xadrezistas de sempre. E porque é que passei a conhecê-los recentemente e a admirá-los? Por ter descoberto o xadrez e me ter apaixonado pelo jogo? Nada disso...

Para mim o xadrez continua a ser um jogo de tabuleiro em que tens cavalos, bispos, uma rainha, torres, peões e rei (estarei a esquecer-me de algum?), e em que o clássico “xeque-mate” consiste no clímax para se distinguir o vencedor do vencido. À parte disso... sei um ou outro movimento das peças, que se trata de uma guerra entre brancos e pretos, que o rei é quem mais importa e que se comem todos uns aos outros se pararem na mesma casa. Comem ou matam, como preferirem... A verdade é que, como já se deve ter percebido, não sei jogar xadrez! Não o lado modesto de “não sei jogar”, mas efectivamente o lado que significa “nem sequer sei as regras”. Imagino que o jogo de damas deva ter surgido por um grupo de mandriões sem a paciência e ginástica necessária para o xadrez, que terá um dia pensado: "Iremos criar algo muito mais divertido e que não faça deitar tanto fumo pelos ouvidos, vai chamar-se "damas"!". Se tivesse nascido noutra era, eu poderia ter sido um dos membros desse hipotético grupo de fundadores...
Ainda assim, aprendi involuntariamente várias coisas assistindo a partes de jogos entre os melhores intérpretes do xadrez, esse desporto mental. Posto isto, a principal dúvida que surgia era: Porque estou a gostar de ver um vídeo de xadrez blitz (isso existe?) em que não percebo o que se está a passar naquele quadrado e em que tenho de ir ver à secção dos comentários quem ganhou depois daquele aperto de mão final?
E o que aconteceu ao clássico “xeque-mate” de voz meio insolente e sorriso meio pretensioso? É como perguntarem o nome ao James Bond e ele não responder: “Bond, James Bond.”. – Pensei, na altura.
A resposta para a primeira pergunta, é que estava a apreciar outra coisa à parte do jogo. Estava a gostar de analisar as expressões e comportamentos dos jogadores: Os olhares ao oponente, o cérebro a expressar-se através das mãos na cabeça, essa mesma cabeça a sacudir-se para a frente e para trás, a face e os olhos a cerrarem e, já perto do final da partida e com pouco tempo no cronómetro, vê-los a atuar a uma velocidade robótica e estonteante, como se tivessem entrado em colapso cerebral, como se tivessem subitamente avariado e passassem simplesmente a mover peças ao acaso, a mil à hora, num desafio de maluquinhos só para ver quem clicava aquele relógio esquisito mais depressa, quando na realidade sabia que tudo o que estava a ver e com o que me fascinava, era aquela insana velocidade de raciocínio e de decisão que ali estava em confronto. Foi o génio que os melhores executantes de sempre guardam dentro de si que me agarrou àqueles vídeos. E precisamente por ser leigo na matéria e não perceber o que se passava no campo de batalha quadriculado, fiquei ainda mais impressionado, reconhecendo a minha dificuldade até para decorar apenas quais os movimentos permitidos no meio de tantas peças.

Todos nós somos atraídos por mentes brilhantes, quando as reconhecemos. A genialidade seduz, e é transversal a qualquer área. Estes jogadores armazenam milhares de padrões no seu crânio, vêem no tabuleiro – em cada jogada - o passado, o presente e o futuro, entrelaçam a memória, a intuição e a tomada de decisão de modo perfeito, e são capazes de vencer uma série de oponentes – meros mortais que conhecem as regras do xadrez - em simultâneo e de olhos vendados, se for necessário.
Isso, por si só, poderia ser suficiente, mas não. Foram as histórias do mundo do xadrez que mais despertaram o meu interesse. Os duelos, as rivalidades, a envolvência, as fantasias, a inspiração e os sonhos. Muito mais que um jogo.

Tudo começou com o filme “Rainha de Katwe”. Um relato biográfico - devidamente temperado pela Disney - acerca de uma menina do Uganda, pobre e à partida destinada à sua dura realidade, mas que começa a sonhar e a libertar-se através do xadrez, que viria a mudar a sua vida. O xadrez como uma forma de inserção social, ambição e desenvolvimento pessoal. O jogo em que “the small one can become the big one”.

Seguiu-se a curta história de vida de Magnus Carlsen, um prodígio norueguês que, aos 13 anos de idade, enfrentou Garry Kasparov – amplamente reconhecido como o melhor jogador de xadrez de todos os tempos, ex - campeão do mundo e número 1 do rating mundial por quase 20 anos.  Resultado: um empate. Depois desse empate com sabor a vitória, Carlsen foi comemorar com a família ao Mcdonald´s, com gelado. 
Aos 13 anos, em 2004, Magnus Carlsen ambicionava um dia ser campeão do mundo de xadrez, no máximo até 2020. Aos 28 anos, em 2019, é campeão mundial incontestável desde 2013, detentor do maior rating da história e tido já como o melhor de sempre por algumas pessoas, apesar de ser difícil avaliar.

E, por fim, como xadrez não seria xadrez sem o já referido Garry Kasparov, também o seu legado é digno de registo e do maior entusiasmo, nomeadamente a sua rivalidade com a maior personificação soviética do seu tempo, o brilhante Anatoly Karpov.



1972: Em pleno período de guerra fria entre os Estados Unidos da América e a União Soviética, em que até o xadrez era uma forma de propaganda e ostentação de domínio ou supremacia intelectual, o americano Bobby Fischer finalmente quebrava a hegemonia soviética de mais de duas décadas nesse campo. Karpov, quase como que o menino de ouro e maior esperança encontrada pelos soviéticos entre todos os seus pupilos para vir a destronar Fischer, acabou por esbarrar-se com outro ás, anos mais tarde.
Em 1975, Karpov apodera-se então do título de campeão mundial de Fischer sem sequer ter de disputar a final contra ele, por este último ter-se recusado a participar no jogo, por lhe terem sido declinadas algumas exigências à Federação Internacional de Xadrez.
Entretanto, nascido no atual território do Azerbaijão, filho de mãe arménia e de pai judeu, e com ideias divergentes ao vigente comunismo soviético, despontava Garry Kasparov...

1984: Apesar de Kasparov ser também um soviético idolatrado, era Karpov quem se fixava como o verdadeiro modelo eslavo, o herói nacional tri-campeão mundial consecutivo - depois de Fischer, os dois seguintes títulos vencendo um desertor da URSS, Viktor Korchnoi - e filho preferido do regime soviético, sendo o mais desejado à vitória na primeira final mundial Kasparov-Karpov, em Moscovo. Após 48 jogos em 5 meses e ainda sem vencedor determinado, essa primeira final acabaria por ser cancelada pela Federação Internacional de Xadrez, com o score de 5-3 a favor de Karpov, mas sem a declaração oficial de um vencedor - segundo as regras, o jogo terminaria assim que alguém atingisse as 6 vitórias. Kasparov, depois de estar a perder por 4-0 e antes de sucumbir ao 5-0, havia forçado uma intensa série de 17 empates para estudar e cansar o adversário, aproximando-se depois perigosamente com três vitórias - as últimas duas, de forma consecutiva e imediatamente antes da imposta paragem. Kasparov, na irreverência e força da sua juventude, subiu inesperadamente à tribuna para mostrar o seu desagrado quando a decisão foi publicamente anunciada. Uma revelia contra o sistema, um ato escandaloso e inconcebível aos olhos da antiga URSS, ainda que Karpov também não tenha ficado agradado com o desfecho dado àquela primeira e longa final.
Mais tarde, antes de ambos voltarem a encontrar-se em mesa, Kasparov daria uma entrevista à revista alemã “Der Spiegel”, um “órgão propagandista do capitalismo reacionário”, obviamente desprezado pelo politburo e pela Federação Soviética de Xadrez. Kasparov tornava-se assim numa espécie de símbolo manifestante anti-regime, antagonizado em muitos aspetos - inclusivamente no estilo adotado em jogo - pela pureza soviética de Karpov.

No segundo encontro, para discutir de novo o título mundial entre ambos, Kasparov tornar-se-ia pela primeira vez campeão do mundo de xadrez, aos 22 anos.
Seguiram-se mais três intensas disputas pela máxima coroa entre os mesmos intervenientes, em 1986, 1987 e 1990. Kasparov venceria todas elas. O último capítulo deste despique, um ano antes da queda da União Soviética, ficou marcado por mais uma demonstração radical de Kasparov face ao seu posicionamento político e ao seu afastamento do regime na altura: Recusando-se a jogar com a representação da bandeira soviética na sua mesa, substituiu-a pela bandeira que atualmente vigora como a bandeira oficial da Rússia. Além do embate entre míticos rivais, era uma batalha entre um Karpov comunista, premiado com a Ordem de Lenin, e um Kasparov rosto da mudança rebelde e anti-comunista. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas contra a nova Rússia.
Ainda hoje, depois de reformados e pós-queda da União Soviética, Kasparov continua um acérrimo opositor ao líder russo, Vladimir Putin, já tendo sido inclusivamente preso, enquanto Karpov adopta uma ideia política oposta e é deputado no congresso do seu país, apoiante de Putin. A rivalidade entre Kasparov e Karpov foi tão intensa e renhida que, apesar dos títulos mundiais darem a aparência de uma exagerada superioridade de Kasparov, os dados desmentem facilmente essa falsa ideia. Em 144 partidas disputadas, verificaram-se 21 vitórias para Kasparov, 19 para Karpov e 144 empates.

Sobra-me ainda saber mais sobre a história de Bobby Fischer, por exemplo, que presumivelmente terá enlouquecido nos finais da sua vida e que - corre a lenda -, já velho e por muitos anos longe da ribalta, chegou a provocar e a derrotar Grandes Mestres do xadrez em modo online, sob a identidade anónima de “Guest71”.

Haverá mais a explorar mas, por agora, foram estes episódios que expandiram o tabuleiro e que me fizeram também provar um pouco deste universo preto e branco.



Charlie S. Dias

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