Posted by : Charlie S. Dias domingo, 30 de dezembro de 2018



Tenho lido bastante sobre Anne Frank e todos os acontecimentos e factos que a envolvem. Li recentemente O diário de Anne Frank (Het Achterhuis), e vasculhei quase todas as informações adicionais e curiosidades disponíveis online. Sempre me interessei pelo período do holocausto e particularmente por testemunhos de vítimas e sobreviventes e referências acerca dos principais intervenientes, mas a vida de Anne Frank marcou-me mais do que qualquer outra história ou pesquisa.

Criou-se um fascínio que me levou a muitas reflexões sobre o assunto e, quase em jeito de homenagem, quis trabalhar um pouco apenas alguns desses pensamentos e escrever acerca do que bebi do seu testemunho.    


Um dos meus maiores desejos logo foi que ela pudesse ter sabido que não falou apenas para a sua Kitty ao longo daqueles anos, mas também para milhões de pessoas do futuro, espalhadas por todo o planeta. E para muitas mais gerações que ainda estão para nascer falará. E como gostava que aquela rapariga com os seus momentos de insegurança, dúvida e autocrítica, pudesse ter visto tantas pessoas – incluíndo eu – a apaixonarem-se por ela, pelas suas tais opiniões reprimidas e o seu jeito tagarela, agitado e curioso.
É realmente impressionante a clareza e instropeção dos seus relatos, que parecem muitas vezes transformá-la numa mulher em corpo de adolescente, mas depois suavemente combinados com emoções e traços da sua real idade. As partes doces e ingénuas (sobretudo no início) que provocam ainda maior revolta ao saber-se em antemão do seu trágico desfecho: O anseio pelo período, as histórias da escola e o orgulho das suas respostas na ponta da língua, as descobertas acerca da sexualidade, o primeiro beijo, aquela ansiedade por novas experiências, a jovialidade irrequieta... E seguramente até alguns erros ortográficos que terão sido editados pelo pai depois da guerra. No registo de 23 de Março de 1944, por exemplo, a sua ingenuidade acerca de métodos contracéptivos troca aquela palavra nova, que acabava de conhecer - “Präservativmitteln” – por “Prasentivmitteln”, o que achei um exemplo demonstrativo e encantadoramente engraçado.
Também me impressionou o detalhe com que escreve, já desde as primeiras páginas. A forma cuidada e minuciosa com que apresenta o anexo e os escritórios, a personalidade dos novos companheiros de casa, os seus comportamentos, as discussões e interações, as dificuldades e rotinas do dia a dia, a situação política e as novidades acerca da guerra... Enfim... Tudo! Até o seu exercício quase pedagógico onde descreve o órgão sexual feminino!! (Eu não faria melhor).

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Ela parecia realmente daquelas crianças de feitio especial, destinada a grandes coisas. Muitas vezes a tal incompreendida, impetuosa, irrequieta, intrometida, com opinião sobre tudo, e até inconveniente. Mas a quem ninguém ficava indiferente. Sobressaía.
Mas a Anne cresceu muito ao longo dos dois anos escondida, e que bem que ela analisou e apontou as suas mudanças. Não só as físicas, mas sobretudo as mentais e comportamentais.
É extraordinário como ela se percebe a analisa como evoluiu ao longo dos meses confinada. Tal como ela reconhece, amadureceu. E também o leitor se apercebe facilmente disso, aliás, só pela maneira como o tipo de escrita e o seu conteúdo se desenvolve ao longo dos meses. Percebe-se, ainda, que tantos livros depois, surge também tanto mais conhecimento e novas perspectivas. Naqueles tempos sem poder ir à escola e respirar fora de quatro paredes, Anne Frank lia e estudava muito.
Ainda teria muito para dar e polir. Transbordava vida do seu interior. Vida e esperança, mesmo naquelas condições! Queria ser útil e tornar-se numa adulta realizada e influente, e não numa típica dona de casa da altura.Tinha imensos planos e sonhos.. Uma das suas frases que obviamente viria a ser das mais marcantes, é quando diz que:

“I don’t want to have lived in vain like most people. I want to be useful or bring enjoyment to all people, even those I’ve never met. I want to go on living even after my death!“


Se ela soubesse...

Era forte, com momentos de fraqueza, como todos. Mas era forte, um espírito forte e inspirador. Tanto que não percebia a fraqueza de Peter... E as comparações com as fragilidades de outros dos residentes, como por exemplo Auguste van Pels, são por vezes muito engraçadas – ela tornou-as assim – e comprovam que a idade não é necessariamente sinónimo de resiliência. Enquanto me vou lembrando do que li no diário, é impossível não me lembrar também de episódios ou passagens que mostram uma Anne alegre, agradecida, bondosa, determinada, destemida e diligente. Mesmo com outras faces que também chegou a mostrar e que aquela realidade imporiam a qualquer ser humano. Fico com aquela certeza de que era uma pessoa que, em condições normais, teria tudo para se tornar feliz e bem sucedida. E no final de contas, se calhar até acabou por consegui-lo na mesma, de outra forma.
A verdade é que custa imaginar que uma pessoa assim e tão talentosa, tenha de ter acabado a morrer miseravelmente de tifo e desilusão num campo de concentração, esquelética, nua e de cabelo rapado, com apenas 15 anos. Custa pensar em todos eles, mas especialmente nessa menina encantadora que se abriu ao mundo sem prever.
Mas felizmente que o livro escrito no secreto diário, às escuras da sociedade, de final forçado e abruptamente abandonado, acaba recuperado, divulgado e exposto a toda a gente do mundo.
Ainda em Junho de 1942, e antes de se mudar para o anexo secreto, depressa se destacam algumas frases que tornam a leitura ainda mais mágica e que logo seduzem pela sua misticidade, como:

“Writing in a diary is a really strange experience for someone like me. Not only because I’ve never written anything before, but also because it seems to me that later on neither I nor anyone else will be interested in the musings of a thirteen-year-old schoolgirl.“

Ou

“ I’m not planning to let anyone else read this stiff-backed notebook grandly referred to as a “diary,” unless I should ever find a real friend, it probably won’t make a bit of difference.”

Ou ainda, já mais tarde, quando até já ponderava publicar um livro de experiências daquele período com auxílio do seu diário:

“You’ve known for a long time that my greatest wish is to be a journalist, and later on, a famous writer. We’ll have to wait and see if these grand illusions (or delusions!) will ever come true...”


É ainda curioso que o último registo no seu diário, a tal despedida forçada, se dedique a explicar a sua personalidade. Como existem duas Annes e como ela nunca conseguiu mostrar a ninguém a sua Anne nº2, a mais sentimental, sincera, frágil, ternurenta e recatada, da qual ela se orgulhava. Pois bem, Anne, foi esse mesmo lado que acabaste por mostrar aos milhões de leitores do teu diário.

Mais uma vez, que pena dá ela não poder estar a ver isto tudo, não é?


                                                                                                                                   Charlie S. Dias


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