Posted by : Charlie S. Dias domingo, 30 de dezembro de 2018





Depois de se ler O Diário de Anne Frank  e de se saber mais sobre toda a história com este distanciamento temporal, torna-se muito difícil não nos imaginarmos na pele do seu pai nos pós-guerra, Otto Frank, que foi o único daqueles oito a viver no esconderijo a poder conhecer esse outro lado da sua filha.

Como terá reagido ao ler todas aquelas palavras do seu tesouro assassinado? Ler o seu amor por ele em muitas daquelas frases, tão terno, enquanto relembrava muitos dos episódios relatados. Voltar àquela casa, com tantas memórias. As últimas memórias.
É como se  tudo tivesse sido orquestrado para que o diário fosse despejado e deixado naquele chão, para que, o seu pai, a pessoa que seguramente ela mais amou na vida e que tudo começou ao oferecer-lhe aquele diário, pudesse ser o único sobrevivente a dar voz ao passado e dedicar então o resto da sua vida a espalhar um eterno legado de uma linda menina contra a opressão e as injustiças e crueldades feitas pelo Homem: O legado de Anne Frank.
Para além disto, Hanneli Goslar, amiga do tempo de escola recordada por Anne no diário, também sobreviveria e seria dos poucos relatos de Anne nos seus últimos tempos de vida no campo de concentração de Bergen-Belsen, pois lá se reencontraram.

Mas mais difícil ainda – diria até impossível – depois de se ler o livro, é precisamente não imaginar como terão sido os últimos meses de vida de Anne Frank, o resto da história que não pôde ser contado.

Não consigo imaginar momento mais doloroso para ela do que aquele em que viu o seu pai e Peter a serem separados dela, naquela que poderia e viria a ser a última vez que os via. Talvez apenas o momento em que viu Margot (a sua irmã) morrer antes dela e junto de si, mas aí já estaria provavelmente tão fraca e abalada até sequer para conseguir sofrer da mesma forma. Otto Frank, numas das declarações pós-guerra que fez, disse que não iria conseguir tirar da cabeça, para o resto da sua vida, a última expressão e olhar que Margot lhe lançou na separação em Auschwitz.
A Anne, até quando terão restado esperanças e aquele sorriso tão característico? Será que chegou a passar-lhe pela cabeça que o seu diário ainda pudesse ser encontrado e publicado? Terá imaginado este sucesso em sonhos suplentes?
Há relatos de uma Anne convicta e cativante de sempre, e tantos outros de uma Anne irreconhecível e visivelmente a morrer. Li algures um relato de, ainda no campo de concentração de Westerbork, uma Anne de movimentos e jeitos contagiantes, ainda “feliz”e sempre junta a Peter. Em Bergen-Belsen, no seu reencontro com Hanneli, julgava os seus pais já mortos. Se ao menos ela soubesse que o pai estaria à espera dela... Povavelmente ter-lhe-ia dado mais coragem, o que parece confortante. Embora a coragem não alimente ninguém nem cure o maldito tifo.
De uma coisa tenho a absoluta certeza... Aquela rapariga que tanto adorava e sabia escrever, com certeza que naqueles momentos desejou ao menos poder ter o seu velho diário a seu lado para poder ter continuado a confiar a sua história a Kitty.

O seu destino foi-lhe forçado pelos alemães. Mas há uma espécie de brilhantismo e glória, e até de felicidade, de certa forma, que nem as suas armas e brutalidade conseguiram impedir. Porque apesar do que lhe foi feito – ou principalmente por isso -  mais de 70 anos depois, o mundo ainda fala de Anne Frank e emociona-se com um dos livros mais lidos na história. Foi e é esse o seu destino.
O seu diário mudou o mundo, porque quando se mete tanta gente a ler e a emocionar-se com a mesma história, significa que se mudou o mundo. O seu impacto não teria sido este – nem de perto – através de outro que não este curioso e cruel desenlace que às vezes mais pareceu encenado, e talvez isso possa servir para atenuar um pouco a tristeza e a revolta que (felizmente) provoca na maioria dos leitores.

Só me resta dizer que conseguiste. Continuas a viver além da tua morte, Anne Frank.




Charlie S. Dias

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