Posted by : Charlie S. Dias segunda-feira, 6 de maio de 2019







Respeito todas as crenças religiosas, mesmo que abomine muitas das barbaridades que daí possam advir. Admiro a capacidade de ter fé divina. Invejo-a até, por vezes. É confortante e motivador.
Já acreditei, hoje não posso dizer o mesmo, infelizmente. Gostaria que houvesse um criador a olhar por todos nós e a salvar a humanidade, mas não...
A dada altura, os três pastorinhos de Fátima e as suas visões eram o melhor “argumento” a amarrar-me à minha titubeante crença. Como poderiam três inocentes crianças inventar uma coisa daquelas e – principalmente a mais velha – dedicar-lhe a sua vida toda se não fosse verdade? Hoje vejo que sim, podiam. Talvez por simplesmente terem carregado dioptrias e mentes pouco elaboradas para distinguir alguns fenómenos.
Sempre acreditei na ciência. Contudo, todas as evidências científicas existentes e mais algumas não são necessariamente motivo para a negação de uma entidade superior. Já para acreditar que provimos de uma costela...
Porque acreditar em Deus – Jesus, neste caso – não tem de ser acreditar na bíblia, escrita por humanos, e sobretudo na igreja católica, um dos maiores assassinos na história da humanidade. Nem sequer numa religião pré-estabelecida e pregada. A religião que, direta ou indiretamente, aposto ser a maior causa de guerras e mortes em todo o mundo.
Foi isso que sempre me fez mais confusão: A lealdade e devoção cega a uma organização religiosa liderada pelos Homens, não poucas vezes veículo de fachada, crime e proveito próprio.
A religião daria um tema de monólogo para uma nova bíblia. Mas, sob a certeza de poder ser considerado blasfemo apesar de não ter a intenção de ferir susceptibilidades, é sobre as minhas idas à igreja, em criança, que quero escrever.





Não era muito comum, mas lá em qualquer Domingo do semestre, os meus pais lembravam-se que eram devotos e decidiam ir à missa. Eu, sem vontade alguma, lá tinha de acompanhá-los...
Quantas horas dura a missa? Uma hora? Uma hora e meia? Tudo o que ainda sei é que é uma eternidade.
À entrada da igreja, no alto da escadaria, o habitual pedinte, que naturalmente aproveitava a impreterível bondade dos fiéis e a afluência de gente para faturar. Tinha pena dele, e dos outros todos das outras vezes e que eram iguais a ele, ou talvez até mesmo ele, sei lá eu. Ainda hoje, espero que não estivessem a pedir para a pinga.
Ao entrar na “casa do Senhor”, aquele silêncio mórbido, que grita respeito e autoridade. Cada passo, cada tossido de velhote, cada ranger de tábua ou estrado, ecoava pelo gigante vazio e propagava-se até àquele tecto sumptuoso. Uma longa passadeira cinzenta estendia-se até ao altar, gasta. Aquele cheiro a... pedra, com a madeira velha dos bancos entranhada, o cheiro a... idade média? – Acabo de aperceber-me de que descrever o cheiro de uma igreja deve ser das tarefas mais difíceis para quem escreve.
Via os meus pais a fletirem ligeiramente o joelho e a benzerem-se diante da carpete e mirando lá o longínquo altar, tal como faziam depois no fim. Eu imitava, obviamente. Sempre pensei no que aconteceria caso não o fizesse. Seria entrar e sair sem dizer “bom dia” e “resto de um bom Domingo” ao senhor ali no alto pregado na cruz. Que rude. Mas fazia-o principalmente por medo de represálias. Porque sempre nos ensinaram que Deus é bom e misericordioso, mas atenção... Olha que se te portas mal ou pecas...! É direitinho ao inferno ou levas logo com um raio na cabeça! Em qualquer dos casos, terminas que nem um pedaço de carne no espeto! Cuidadinho...
Pergunto-me se muitas pessoas não serão “crentes” por medo de acabar carne no espeto ou de qualquer outro castigo. Porque já se sabe...: “Mais vale prevenir do que remediar...!”. E “Nunca se sabe...!”. E “Eu não acredito em bruxas, pero que las hay...”. Ai hay, hay!
Escolhíamos um espacinho no comprido banco de madeira, num de tantos. Normalmente teria de se ficar ao lado de um desconhecido – ensanduichar-nos entre dois velhotes solitários de cada ponta ou simplesmente assentar ao lado de outra qualquer família. Disso gostava, admito. Sentia-me parte de um grupo, ali estavam reunidos todos os irmãos, filhos de Deus. (Como é que é, bro?!)
Gostava genuinamente dessa falsa proximidade, e dos sorrisos para criança que me mandavam. Tão novinho, tão fofinho, a ir à igreja obrigado... tão católico que ele é!
Para não bastar a duração da missa, chegava-se sempre um pouco mais cedo para não perder qualquer pitada do início épico e fulgurante, ou era eu que tinha a impressão de que o padre se confundia de noiva e chegava sempre atrasado, e possivelmente até teria mesmo razão.
Tendo bicho-carpinteiro, desesperava rapidamente. Até que ele finalmente surgia com a sua batina roxa, verde ou branca, mas sempre pomposa, para mostrar quem manda ali, quem é o mais próximo de Deus na Terra – pelo menos, naquele recinto. O pastor daquelas ovelhas. Por vezes vinha acompanhado por uns jovens que pareciam os seus anjos e que ficavam sentados por detrás dele. Uns verdadeiros “guarda-costas”, portanto. Ou, na minha infantil mas fundada analogia: o pastor alemão daquele gado. Iriam cantar ou ler, mais tarde, e nunca percebi bem porque raio estariam ali se não estivessem a ser forçados pelos pais, como eu na plateia.
A cerimónia decorria. Eu divagava nos meus pensamentos, ou aproveitava aquele local apropriado para relembrar quem tinha partido e que me faltava. Olhava os magnânimos e majestosos vitrais, e as imponentes estátuas da virgem Maria e de José, uma de cada lado. Aquilo era sublime e deslumbrante arte sacra, de facto. A sério que gostava. Os azulejos, o presbitério ou o altar-mor ou o que quer que seja, já não sou capaz de visualizar, e desconfio que mesmo que lá voltasse não teria a capacidade de os detalhar como gostaria.
Quando me enchia de coragem, tentava escutar o sermão, entender o que estavam para ali a proferir e a ler, mas simplesmente não conseguia! A linguagem arcaica e a entoação monótona... Até hoje teria muita dificuldade, provavelmente.
De repente, todos se erguiam a cantar pequenos excertos ou, por outro lado, ajoelhavam-se no genuflexório, e lá tinha eu de acompanhar... De cada vez que levantava os joelhos daquela tábua rija e castigadora, sentia-os a arder e perguntava se ainda haveria mais. Mas não desgostava, finalmente tinha um pouco de ação e dor para acordar... Imagino é os velhotes de joelhos fracos, coitados. Alguns lá permaneciam sempre sentados.
Mas o “pior” eram as frases ensaiadas para o rebanho recitar e elevar a grave e uníssono eco. De tal forma, que são as únicas falas de que ainda me lembro. E como tenho pena de não conseguir reproduzir os tons daquelas palavras neste texto... mas espero que se compreenda. 
Desde o “Amén” ao “Que Deus esteja convosco”, ao que se respondia: “Ele está no meio de nóóóóóós”. E eu, cá para comigo, pensava como isso era esquisito e apavorante. Sempre que me julgava sozinho, quando estava nu, a tomar banho ou quem sabe que mais, sempre que ia à casa de banho...: “Ele está no meio de nós”! Sempre à coca, sempre a ver-me! Depois, o padre rematava com o som sinistramente estridente e súbito: “Corações ao alto!”. (Mãos ao ar!)
Recitava-se o “Ave-Maria” e o “Pai Nosso”, que eu tentava acompanhar com alguma batota da qual esperava que Deus não se tivesse apercebido. Quando o coro entrava em cena para cantar os agudos que ameaçavam a integridade dos vitrais e dos tímpanos mais sensíveis, também era um bocadinho arrepiante. Porém, nada bate aquela frase que rompia as colunas, aquela inflexão ascendente, aquela voz, aquela assertividade e autoridade... aquela frase: “É nosso dever... É NOSSA SALVAÇÃÃÃO!” – Até me sobe um frio pela espinha!! Digno de uma verdadeira e macabra seita religiosa!
Mais à frente, quase todos os adultos iriam provar o "corpo de Deus", mas só o padre é que podia tocar no vinho... No sangue, no sangue...!! Mais ninguém!
Eu tinha pena. Também queria provar a hóstia e pedia para me explicarem o seu sabor, ao que respondiam que não sabia a nada. Mas como a nada? Queria experimentar, acho que merecia tal recompensa por ter aguentado tanto tempo na missa, mas pelos vistos é preciso um longo aprendizado para realizar oficialmente a primeira comunhão e então ser apto a comer o corpo de Deus e saber se é gostoso.
E como um bom plot twist é sempre bem-vindo, eu revelo-me: Um dia vim a realizar a minha primeira comunhão! O sacramento da Eucaristia!! Sendo bastante honesto, parece-me que foi a única coisa boa que da catequese tirei, além de uma ou outra canção engraçada. Desses tempos, as lembranças são escassas. As mais marcantes são: que ia contrariado, os meus nervos na minha primeira confissão pelo receio de ser julgado um pequeno diabo pecador que mereceria ser crucificado – andar à bulha com os irmãos e roubar-lhes cartas Yu-Gi-Oh! é pecado – , e que as esporádicas aulas com o padre Ricardo eram uma valentessíssima seca! Ele que me desculpe, onde quer que esteja...
Mas voltando à igreja...:
Finalmente havia conquistado o direito a comungar. Finalmente podia ir papar hóstias! Fora um caminho árduo, mas tinha valido a pena.
 No entanto, para minha decepção, a partilha avarenta entre irmãos segue regras rígidas e só é distribuída uma hóstia a cada indivíduo. Se bem me recordo, a sagrada hóstia deve ser discretamente colocada debaixo da língua até se desfazer. Nada de mastiganços e de repetir a dose...
Adiante, vinha o momento da recolha de contribuições monetárias dos fiéis. Adorava quando lá surgiam os voluntários com as suas cestinhas do pão para receber o dinheiro, porque sabia o que isso significava: A missa estava quase a terminar! Estava quase!!!
Sem nunca perceber bem porquê, depois de entregue o donativo, dava-se um beijo na pessoa do lado. (Bro... Sinto-me mais pobre.)


Normalmente ao som de música – talvez para festejar –, terminava a cerimónia, e após a repetida despedida, o sol da rua parecia novamente brilhar ainda mais à saída do que havia feito à entrada. Amén!







Charlie S. Dias

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