Posted by : Charlie S. Dias domingo, 6 de outubro de 2019



Dia de eleição. Este texto é antigo, redigido a pensar nas passadas eleições europeias. Ainda assim,  aposto que a  principal mensagem se mantém atual. 



Grândola, vila morena
Terra da insanidade
O povo é quem mais dá pena
Dentro de ti, ó cidade”



O próprio Zeca Afonso deve andar às voltas no seu caixão ao ver no que se tornou a consciência política em Portugal e o boicote de quase 70% que se fez às urnas nas recentes europeias, depois de "Grândola Vila Morena" se ter tornado no hino da libertação e da instauração da democracia. Ele, e principalmente todos os revolucionários de Abril que lutaram para alcançar a liberdade e a democracia. Todos os que participaram, em especial os que morreram por essa causa aparentemente desvalorizada. Sim, desvalorizada. Independentemente de terem sido eleições europeias... porque têm igualmente um grande impacto no nosso país, como deveria ser óbvio, não fosse Portugal um país da Europa e membro da União Europeia. Sei que às vezes não parece, e sei que quase tocamos África, mas a verdade é que ainda estamos na Europa.
É incompreensível que Portugal, que esteve ainda há pouco tempo controlado por um sistema ditatorial, obtenha taxas tão altas de abstenção.  Talvez se prefira os tempos em que não dava trabalho ter de entender diversos discursos políticos, escolher o melhor candidato e desenhar uma cruz, porque, primeiro, só havia um, não havia cá escolhas, e depois, para desenhar cruzes dessa índole, só mesmo se fosse nas paredes do forte de Peniche, por exemplo. Não era necessário ter cá desses trabalhos... E realmente, dá menos trabalho ser-se controlado pelo estado como uma marioneta do que ter pensamento próprio, contra isso não posso argumentar.
A verdade é que a população portuguesa, mais do que preguiçosa, é ignorante e possui uma falta de responsabilidade cívica gritante. Se não for para proveito próprio, nem vale a pena mexer um dedo do pé sequer, quanto mais a canseira de fazer uma breve pesquisa na internet ou assistir a debates ou notícias no conforto do sofá. O irónico nisto, e é aí que também entra a ignorância, é que votar acaba por ser um proveito próprio, porque é através do voto que poderão surgir mudanças nos sistemas políticos e consequentemente na vida dos cidadãos. E maior ingenuidade do que ter esperança nisso, é acreditar que simplesmente ficar em casa a chamá-los de ladrões é a melhor alternativa.
Dá-me a ideia de que se pensa em muitas cabeças abstencionistas que se está a prestar um grande favor em ir votar ou que só quem apoia ou se identifica com quem concorre deve fazê-lo, quando deveria pensar-se precisamente o contrário.
Recordo-me que, em Montalegre, um grupo de “manifestantes” boicotou o acesso às urnas como forma de protesto. Estando-se no pior dos casos apenas a prejudicar a si próprios, que não tiveram qualquer impacto nas escolhas políticas que se irão determinar para o país, pensam, no entanto, que estão a fazer uma grande mossa aos partidos políticos ao abstencionarem-se. Lembram-me aqueles pirralhos que não querem a sopa para o jantar e que juram não a comer, de estômago vazio e esfomeado. Só que, neste caso, os partidos são aquele pai autoritário que pensaria: “Então não comas, quem passa fome és tu, quero lá saber...”. E com razão. Não só irão continuar a comer sopa, como nem sequer tentaram mudar para outra ementa, porque estavam mais ocupados a fazer uma birra que não passa de auto-sabotagem.
Outras pessoas, um pouco por todo o país, estavam demasiado ocupadas a trabalhar... para o bronze. 


Quando encontro mais filas para o Mc’ Donalds do que para as mesas de voto, é natural que fique indignado e preocupado. Significa que um cheeseburger com batatas fritas tem mais importância do que o estado do país e as políticas nacionais e europeias que acabam por refletir-se nos rendimentos de cada um de nós. Rendimentos para ir comprar coisinhas boas, como por exemplo um cheeseburguer do Mc’ Donalds.
Ou quando encontro mais pessoas nas eleições para as presidenciais de clubes de futebol do que para a política nacional e europeia... Filas do tamanho da ignorância!! Porque toda a gente sabe que o futebol é o que mete o pão na boca das pessoas e garante a paz, e toda a gente sabe que é mais importante garantir que “nós” ganhemos o campeonato do que eleger deputados europeus e nacionais. “Nós”... que na verdade são os jogadores milionários à custa das nossas contribuições para o espetáculo, mas é parecido, vai dar tudo ao mesmo! Agora deputados europeus e tal...? O que é que tenho a ver com eles?? Esses gatunos que enchem os bolsos e que não têm qualquer impacto na minha vida!!! Eu nem sequer sei o nome deles ou se chutam com o pé esquerdo ou direito, quanto mais...!

O dia de reflexão é já por si estúpido, mas torna-se ainda mais insignificante perante este paradigma. É bom saber que os portugueses aproveitaram bem o dia de reflexão para determinar escolhas importantes: Ligar o 760 da sic na feira do mel, o 760 da tvi no festival das chouriças ou o 760 da RTP na festa dos vinhos? Usar protetor solar de factor 30 ou 50 para a praia? Ir de sunga, tanga, ou todo ao léu? Deitar as culpas da abstenção para o calor, a bandidagem ou a falta de informação? São questões importantes que espero que tenham sido bem ponderadas.


Numa breve reportagem televisiva realizada numa praia de abstencionistas, uma das principais justificações para a abstenção era a de que “são todos uns corruptos, nem vale a pena. Só ladrões!”.
Perante este negro cenário de vigarice, é importante refletir e traçar estratégias inteligentes. Ora, vejamos: Aquilo está cheio de gatunos, é só corruptos...!!!! O que fazer quanto a isso? Deixar os gatunos votar, para lá continuarem e permanecer tudo como antes, enquanto se reclama na taberna, na rua, na praia... O pobre povo que é constantemente roubado, coitado. O povo português sempre repleto de sábios estrategas, não tivessem aprendido com as linhas de Torres ou a "tática do quadrado"... É deixá-los a eles tratar dessas coisas de ir votar e tomar decisões importantes perante o nosso silêncio eleitoral enquanto nós ficamos na praia a acumular areia entre o rego, é deixá-los lá, sempre os mesmos nos seus poleiros, pois claro!!! Obviamente!! Porque “nem vale a pena”, mais de 60% da população votante nem sequer tem assim muito impacto para mudar nada...
É de resto engraçado que percebam de política de tal forma que conhecem todos os partidos e todos os seus elementos ao ponto de alegar que são todos corruptos. Afinal, o problema talvez não esteja na ignorância. São é demasiado entendidos, uns visionários. Já a sabem toda... 
Em todo o caso, haverá sempre os mais e menos corruptos, digo eu... Porque deixar lá sempre os mesmos? Haja um pouco de partilha e diversidade entre os ladrões, ao menos.

Outra das alegações, além da desconfiança em cada um dos partidos, é a falta de conhecimento político para tomar uma decisão consciente – para aqueles mais modestos que de facto não conhecem o caráter de todos os políticos envolvidos. Pois deixem-me que vos diga, que um voto em branco é também muito consciente, principalmente nesses casos. 
O que imediatamente nos leva ao próximo típico argumento de abstencionista, que “votar em branco é a mesma coisa que não ir, e para isso mais vale não ir.”. O problema nesta justificação é que votar em branco não é o mesmo que não ir. Votar em branco demonstra adesão às urnas, demonstra que a população participou, que está insatisfeita, mas que ainda assim se mantém ativa como parte da democracia e que essa mesma democracia está forte e é para continuar, que não queremos voltar aos regimes autoritários do passado em que somos silenciados. A abstenção, por outro lado, é só mesmo uma perigosa demonstração de ignorância e preguiça. Se algum dia alguém vier comprometer a democracia com argumentos de que as populações nem sequer exercem o poder de voto, não estará totalmente errado. Caros aspirantes a ditadores, ponham os olhos neste retângulo no traseiro da Europa, pode estar aqui a vossa grande oportunidade...
O problema é que, para qualquer pessoa a favor da democracia, votar devia ser mais que uma escolha, mais que uma possibilidade. Porque é que alguns têm de ir a voto garantir que é aplicada a democracia de todos nós, enquanto os outros ficam a olhar? Não que dê muito trabalho, pelo contrário. É uma questão de lógica e princípios. Muitos poderão pensar que a democracia está garantida, e de facto vai estando, mas apenas com o contributo e à custa de quem vai votar, porque caso ninguém votasse e cada um de nós deixasse essa responsabilidade social para o próximo, se não houvessem votos, seria impossível exercer a democracia, ela não existiria. Além do exemplo que estarão a passar aos mais novos, demonstrando que se devem interessar minimamente pela política e participar no futuro de todos nós. Os votos são os batimentos cardíacos da democracia, e os nossos estão escassos, o coração fraquito... Oxalá nunca pare. Vote-se em branco, se necessário, mas vote-se!!
É também engraçado que não se perceba nada de política ou que não se participe sequer no direito e dever básico da democracia, mas que depois para reclamar já se ganhe um súbito conhecimento em que se debitam certezas em gritos revoltantes que até ganham forma de gafanhotos de saliva cuspidos pela boca. É o chamado conhecimento seletivo e intermitente. 
Reconheço a dificuldade e os nervos que algumas questões acarretam. Nos debates, por exemplo, todos se acusam, todos se interpelam e qualquer um se confunde... o que um diz ser verdade, o outro diz ser mentira. Se uma saca de um papel com barras, o outro saca dois ou três papéis com diagramas. Faria falta um espanhol da máquina da verdade para auxiliar os espectadores. Assim como há, de facto, várias questões complexas na política, que muitas vezes acabam até por englobar conhecimentos na área da economia, da justiça... Afinal, a política é um mundo. Mas não é desculpa, porque existem meios para ganhar um senso básico que já permita discriminar algumas preferências. Além do voto em branco ser sempre uma escolha, mesmo que isso não aconteça - vale sempre a pena reforçar. 

Após esta breve avaliação à mentalidade da (pelos vistos) maioria da população, é verdade que por vezes a abstenção até pode parecer apelativa, já que a democracia pode também ter o efeito de meter toda esta genialidade espalhada pela abstenção a votar no que considero realmente más e ameaçadoras opções, nomeadamente os partidos extremistas. Os extremos nunca podem ser bons... Talvez haja alguns: O Toto Salvio, o Brahimi, o Raphinha.... – Diriam alguns dos sábios abstencionistas.

Que as próximas gerações ajudem realmente a garantir a democracia e o respeito pelo direito de escolher. E que o grito da liberdade e da democracia da verdadeira letra de Zeca Afonso se volte a fazer sentir apaixonadamente:




"Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade”



Charlie S. Dias

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